terça-feira, 11 de maio de 2010

Desenvolvimento moral, social e julgamento moral

A culpa, um importante aspecto afetivo do desenvolvimento moral, tem sido utilizada como um de seus principais indicadores. Nas crianças, a culpa aprimora-se gradualmente, sendo influenciada pelos modelos de moralidade e métodos disciplinares aos quais estão expostas (Harris, 1989). Na busca do entendimento de como se dá a evolução do desenvolvimento moral, tão decisivo à interação de um indivíduo com os demais membros do seu grupo social, um grande número de pesquisas tem sido realizado, dando suporte ao surgimento de diversas teorias sobre o assunto. Segundo Bee (1984), o desenvolvimento moral é um tema que pode ser subdividido em três subtemas referentes a aspectos particulares do desenvolvimento da consciência. O primeiro é o comportamento moral e diz respeito ao direcionamento do próprio comportamento, por exemplo pela criança a partir do acatamento de regras internalizadas. O segundo trata dos sentimentos morais, ou seja, da parte afetiva da moralidade. Refere-se aos sentimentos negativos envolvidos na transgressão e dela decorrentes, como a vergonha e a culpa, e diz respeito também aos sentimentos positivos envolvidos em situações que estão de acordo com os padrões morais ou normativos vigentes ou que os sobrepujam, como a satisfação, o auto-respeito e o orgulho. O último é o julgamento moral e envolve o elemento cognitivo do desenvolvimento da moralidade. Trata de aspectos como a capacidade da criança determinar se alguma ação é certa ou errada, se alguém é culpado ou não. Envolve a investigação do desenvolvimento desta habilidade e das mudanças dos padrões aplicados pelas crianças às ações com o avanço da idade. Freqüentemente, os estudos sobre o desenvolvimento moral têm tratado estes três elementos da moralidade separadamente, porém, defende-se que o julgamento, os sentimentos e os comportamentos morais estão intrinsecamente relacionados entre si.


Piaget foi um dos primeiros estudiosos do pensamento moral e, inicialmente, dedicou-se à análise do desenvolvimento das regras em jogos infantis, buscando compreender um pouco o comportamento das crianças diante de um sistema de regras. Segundo ele, "toda moral consiste num sistema de regras e a essência de toda moralidade deve ser procurada no respeito que o indivíduo adquire por essas regras" (Piaget, 1977, p.11). Posteriormente, dedicou-se à análise do julgamento moral, estudando os efeitos da coação adulta em problemas relativos às mentiras, roubos e desajeitamentos praticados pelas crianças. Neste âmbito, observou como elas se posicionam diante de situações envolvendo acidentes ou danos intencionais, no papel de avaliadoras do ato do personagem e do prejuízo causado. Utilizou-se de entrevistas, nas quais apresentavam-se às crianças pares de histórias (dilemas), onde os personagens deveriam ser comparados e julgados no sentido de saber se ambos os personagens eram igualmente culpados ou se um era mais culpado do que o outro e porque. A partir disso, Piaget propôs a existência de dois estágios evolutivos no desenvolvimento do raciocínio moral da criança, a saber:

Heteronomia - Caracteriza-se pelo predomínio do respeito unilateral, do realismo moral e da responsabilidade objetiva. Nesta fase, a criança possui uma concepção de regra como algo exterior à consciência e imposto pelo adulto. O bem é definido pela obediência rigorosa às regras. O julgamento das ações é realizado em função da responsabilidade sobre a gravidade ou o prejuízo causado.

Autonomia - A moral autônoma possui como elemento essencial a cooperação, possibilitadora do surgimento do respeito mútuo e da responsabilidade subjetiva. As crianças começam a intensificar os julgamentos de acordo com as intenções e não somente pelas conseqüências. Envolve a noção de justiça, a mais racional das noções morais.

A posição de Piaget deu origem a diversas outras teorizações, na verdade reelaborações, que mantêm alguns pontos em conexão, mas reconsideram outras questões. Um destes autores é Kohlberg (1971) que, como Piaget, atribui um papel fundamental à subjacente construção das estruturas cognitivas no que diz respeito à progressão moral, bem como propõe uma seqüência invariante de estágios que caracterizam esta evolução. Neste sentido, a evolução do pensamento lógico subsidia o desenvolvimento moral (a consolidação das operações formais tem se mostrado uma condição necessária à emergência dos princípios morais). Para ele, contudo, teorias puramente cognitivas são limitadas, pois não levam em conta aspectos do desenvolvimento social do indivíduo, como, por exemplo, o role taking skill, ou seja, a habilidade de considerar o ponto de vista do outro, que pode ser diferente do seu, e de coordenar estas duas perspectivas.

Kohlberg dá especial atenção ao desenvolvimento social, salientando o papel do role-taking como elemento que possibilita ao indivíduo colocar-se no lugar de outra pessoa e, assim, melhor entendê-la. Flavell, Botkin, Fay, Wright e Jarivis (1968; citados em Camino, Camino & Leyens, 1996), inclusive, diferenciam dois domínios do role-taking: role-taking perceptivo e role-taking conceitual, sendo este último visto como a capacidade de tomar a perspectiva mental do outro. Já Selman (1971, 1974, 1976; citado em Camino, Camino & Leyens, 1996), apoiando-se na distinção feita por Flavell e colaboradores aponta a estrutura e o conteúdo como dois aspectos distintos do role-taking. Enquanto a estrutura refere-se ao grau de diferenciação entre as perspectivas mentais próprias e alheias que a criança atinge e à capacidade de coordenar tais perspectivas, o conteúdo diz respeito à compreensão (conceitualização) da criança sobre os aspectos subjetivos de si e do outro, compreensão esta baseada na experiência social e determinada pelo estágio de role-taking em que a criança se encontra.

O role-taking diferencia-se, até certo ponto, da empatia, pois esta privilegia a capacidade de sentir o que o outro sente o que é diferente de compreender, cognitivamente falando, a perspectiva alheia. No entanto, poder-se-ia argumentar que há um aspecto de continuidade entre tais habilidades, podendo a empatia ser considerada como o aspecto emocional do role-taking. Existem, entretanto, controvérsias a esse respeito. Esses autores realizaram um estudo (Graham & Weiner, 1986) com crianças de 6 a 12 anos pedindo-lhes que descrevessem um episódio passado no qual tivessem sentido culpa e que avaliassem em que medida tinha sido responsáveis pelo acontecimento. Observaram que a sensibilidade ao papel da responsabilidade pessoal transforma-se notavelmente com a idade, especialmente entre os 6 e os 9 anos. Enquanto as crianças de 6 anos descreviam episódios que as faziam sentir culpa, embora reconhecendo que tivessem pouco controle sobre o acontecimento, as crianças mais velhas referiam-se a fatos que estavam mais sob o seu controle. Dessa forma, distinguem-se situações em que o dano ocorreu intencionalmente daquelas em que o acontecimento foi acidental. Como salientamos no início, grande parte dos estudos de Piaget na área de julgamento moral exigia da criança entrevistada a comparação simultânea de duas situações: uma onde um grande dano é causado acidentalmente e outra onde um pequeno dano é causado propositadamente. Levar em conta essas duas variáveis, a intenção e o dano, pode ser difícil para a criança, como demonstram os resultados de Piaget, que sugere que as crianças somente são capazes de raciocinar adequadamente sobre conteúdos relativos à moralidade aos 9 anos de idade.

O desenvolvimento moral das crianças é fortemente influenciado pelo comportamento dos pais ou dos adultos que desempenham o papel de modelo e pelo impacto das técnicas disciplinares que utilizam. Para Mussen, Conger e Kagan (1977, p. 373), "os padrões dos próprios pais e a natureza do relacionamento pais-criança desempenham um papel crucial na determinação de se o desenvolvimento da consciência numa dada criança será fraco, normal ou excessivamente rígido e punitivo". Segundo estes autores, muitos estudos têm demonstrado uma relação entre o tipo de práticas que os pais exercem e a tendência de uma criança a sentir culpa por "ter feito algo errado". Um nível de consciência elevado e reações internalizadas às transgressões se desenvolvem como resultado de relacionamentos íntimos e afetuosos estabelecidos pelos pais com a criança, bem como do uso de técnicas educativas que gerem nesta sentimentos desagradáveis decorrentes de pequenas infrações. Harris (1989) afirma que quando os pais apontam para a criança o dano subjacente à quebra de uma regra, ela aprende mais cedo a antecipar culpa após uma transgressão e espera dos outros o mesmo sentimento. Desta forma, sentir culpa diante de transgressões é um aspecto utilizado como índice do desenvolvimento da consciência e da internalização dos padrões morais.



Referências bibliográficas:

Graham, S. & Weiner, B. (1986). From an attributional theory of emotional developmental psychology: A round-trip ticket? Social Cognition, 4, 152-79.



Graham, S. (1988). Children’s developing understanding of the motivational role of affect: An atributtional analysis. Cognitive Development, 3, 71-88.



Kohlberg, L. (1971). From is to ought: How to commit the naturalistic fallacy and get away with it in the field of moral judgement. Em T. S. Mischel (Org.). Cognitive Development and Epistemology. New York: Academic Press.

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